Dissecando a Personalidade Psíquica para Entender Quem é Você na Fila do Pão

No texto “A Dissecção da Personalidade Psíquica”, Freud descreve a complexa estrutura da mente humana, dividindo o pobre EU de modos que precisaríamos de três pronomes para nos referirmos a nós mesmos: o Eu, o Isso e o Aquilo. O isso é o Id, o inconsciente, alguma coisa tão estranha que seria impessoal se não fosse EU também. Aliás, o Id é talvez o mais EU de todos. E tem ainda o Super-eu no papel de “Aquilo” que eu queria ser: o eu idealizador. Poxa vida, que complicação que é ser EU para Freud. Mas vamos por partes, literalmente por partes.

“Dissecção” é uma palavra bem conhecida para o pessoal das ciências biológicas. O termo se refere ao ato de dissecar, ou seja, de cortar e separar as partes de um corpo ou de uma estrutura para examinar seus detalhes internos e compreender sua organização e funcionamento. No contexto freudiano, “a dissecção da personalidade psíquica”, sugere uma análise detalhada e profunda das componentes e estruturas que formam a nossa personalidade. 

Em poucas palavras, o EU é um sujeito dividido, mas tão dividido que se ele estivesse na fila do pão, não saberia dizer quem ele era: se o pão, o padeiro ou a padaria. 

Mas voltando ao texto em questão, Freud então divide a psique humana nestas três instâncias, onde o Id representa os impulsos instintivos e as necessidades primárias, operando de forma inconsciente; o Super-eu, formado das internalizações dos valores sociais, exerce uma função crítica e punitiva, influenciando o EU não apenas com julgamentos, mas também com ideais, pois o Super-eu é estrutural, não é um sinônimo de consciência moral, e também opera em nosso inconsciente.

E o EU é quem?

O EU é uma entidade mediadora que tenta cumprir suas tarefas sob a constante pressão dos desejos instintivos do Id, e as expectativas do Super-eu, em meio às realidades do mundo externo. Então o EU vive contra MIM em uma negociação perene entre quero, não posso, devo, não quero, o que pode levar o sujeito a conflitos, angústias e, em alguns casos, patologias.

O EU é um Outro

Nessa confusão de pronomes que o EU se apresenta para Freud como sendo ISSO e AQUILO, um processo interessante chamado identificação explica que “o eu é um outro”, como dizia Lacan que disse Rimbaud.

Isso porque, uma das instâncias do Eu, o Super-eu, inicialmente é representado pelos pais, ou cuidadores, porque estes desempenham o papel da autoridade, ou do modelo, para o sujeito que está se formando. A autoridade se manifesta tanto pelo amor quanto pelo castigo, estabelecendo as bases da moralidade na criança.

Com o tempo, essa influência parental é internalizada, formando o Super-eu que assume a função de observar e regular o EU com a mesma severidade que os pais usavam, independentemente de a educação parental ter sido rígida ou permissiva.

A formação do Super-eu é complexa e baseada no processo de identificação, onde o Eu adota características de outra pessoa, inicialmente os pais ou cuidadores, transformando-se à semelhança deste modelo. Esse processo é primordial na nossa ligação com os outros, não sem razão, a identificação já foi comparada à incorporação oral, canibalesca, do outro. 

Mas o Super-eu, além de ser partes do outro incorporadas em nós, é também o portador do ideal do Eu. É por ele que nos medimos e nos julgamos, nos aprovamos e nos reprovamos com a régua da velha ideia que tínhamos dos primeiros cuidadores, pois fora com eles que nos identificamos pela primeira vez, e com os quais, provavelmente tivemos sentimentos de admiração ou respeito por necessidade. Se o outro não olhasse para nós, morreríamos. A identificação foi, ao seu tempo primário, questão de vida ou morte.

O EU é o Inacessível 

Agora que a fila do pão vai encurtando, tendo “resolvido” o problema do Super-eu, nos resta definir o Id para tentar descobrir quem é, afinal, o EU nessa história. O Id (ou o Isso) é a parte obscura e inacessível de nossa personalidade que pode ser descrita somente em contraposição ao Eu. É o cavalo selvagem desgovernado por seu instinto, é “o caos, um caldeirão cheio de excitações fervilhantes.”

Não precisamos prosseguir com essa definição porque o texto do Freud é bem curtinho e didático. Mas para trazer uma metáfora mais atual, digamos que o EU na fila do pão é o neurótico que está pensando: compro ou não compro, se compro, como, se como engordo, se não como fico com fome, se fico com com fome me sinto fraco, mas se como só um pouquinho quero o filão inteiro, enfim… O EU tá na briga entre o desejo e o dever, identificado com valores, pessoas e normas que ele não escolheu de livre e espontânea vontade e nem sabe porque está nesse lugar de tamanha dúvida sobre ele próprio, porque ele, de próprio, não tem nada.

E aí entra a psicanálise, cuja “intenção é, realmente, fortalecer o EU, torná-lo mais independente do Super-eu, ampliar seu âmbito de percepção e melhorar sua organização, de maneira que possa apropriar-se de novas parcelas do Id. Onde era Id, há de ser Eu”, diz Freud.

Em outras palavras, eu diria que o EU busca um pronome para chamar de seu. Só seu. Mas não vai conseguir pois sua estrutura é essa: dividida. Então, separar-se do outro representado pelo Super-eu e ter consciência de que existe um cavalo selvagem no comando, pode ajudar o sujeito a se libertar talvez um pouquinho da sua ânsia de saber, de se conhecer para aplacar suas dores e angústias. Mas se tem uma coisa que a psicanálise não faz, é dar receita de bolo. E é justamente essa a sua beleza. Pois então, na fila do pão, seja quem você puder.

Fonte: Freud, S. (2010). “A Dissecção da Personalidade Psíquica” In S. Freud, Obras completas (P. C. de Souza, Trad., Vol. 18, pp. 139-160). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930)

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