A Compulsão dos Dias. Um Caso Quase Clínico

gota de água caindo sobre as mãos

Eu era estudante de psicanálise e trabalhava em uma xexelenta loja de artigos infantis, imaginando que dias melhores viriam. A loja não era de todo ruim, mas a dona do negócio era uma acumuladora compulsiva. Até os sacos plásticos que embalavam as roupas e as caixas de sapatos que ninguém queria, ela pedia para eu guardar e acumular em um pequeno espaço onde as traças faziam festa.

Clientes entravam clientes saíam, alguns trocavam ideias sobre banalidades, mas a maioria se abria para um papo mais profundo: “eu me separei quando meus filhos tinham 7 e 10 anos”; “meu marido morreu depois de muito sofrer com afasia” e por aí ia. Claro que, sendo uma loja de artigos infantis, a maioria das clientes era mulher.

Como psicanalista em formação (eterna, diga-se), eu me sentia a última bolacha do pacote com tantos corações aflitos em busca de um ouvido. Mas minha amiga varejista de décadas logo puxou meu tapete quando lhe contei sobre o dia a dia na loja: “amiga, as pessoas são carentes e o blá blá blá é típico do comércio.” Ok! Um banho de água fria nos meus devaneios, mas os dias iam me mostrando que a vida é uma clínica aberta.

Crianças rabujentas, imperadoras de mães e pais submissos era o que mais tinha, além de notícias do tipo: “vim comprar um presente para uma criança especial… que tem autismo…”

Mas um dia, um causo (causo mesmo, pois parece de mentira) surgiu à minha frente. Um menino de uns 8, 9 ou 10 anos de idade apareceu com sua mãe e seu pai. Procuravam sapatos para o moleque. De cara, o menino disse que queria uma galocha. A mãe: mas galocha você já tem. Eu quero uma galocha, eu quero uma galocha, bradava o pequeno príncipe. Ok! Te compro uma galocha, mas temos que ver um tênis para você ir à escola. Tenho sede, quero beber água, quero beber água, tenho sede, quero beber água. O menino deve ter vindo do Saara. O pai corre comprar água. Tem um supermercado aqui ao lado, recomendei.

Papo vai papo vem, ainda bem que nenhum outro chato apareceu no meio-tempo, e comecei a mostrar as opções de calçados à pequena majestade, o menino grande.

Quero beber quero beber. Enquanto eu não beber, eu não vou experimentar nenhum sapato. A essa altura, compreendi que o buraco era mais embaixo. E dá-lhe paciência. Bebi um gole d’água: você me causou sede, disse eu ao menino em uma intimidade não permitida se eu trabalhasse em uma loja uau!, mas como eu trabalhava em uma xexelenta, eu podia.

O pai chega com uma garrafinha d’água e qual a minha surpresa ao ver que a sede do menino não era de boca, era de mãos. Ele queria lavar as mãos. Ofereci o banheiro e nada. Ofereci esses lencinhos umedecidos e nada. Eu estava ali para vender o sapato e liguei o F. Oda-se. Mas o causo começou a ficar sério. O menino não apenas queria lavar as mãos, ele queria ver a água escorrer entra elas.

Que causo estranho, pensei. Deve ser o destino me perguntando se eu dou conta…

Sapato vai sapato vem e o menino, de uma lavada de mão passou a duas, três, quatro, uma a cada minuto. Mais, mais! Deixa escorrer! O menino queria ver a água pingada por sua mãe escorrer por suas mãos, e ela que enxugasse o chão com um lencinho de papel.

Eu não sabia como agir e muito menos o que dizer. Eu só queria vender logo e que esse povo saísse do meu horizonte antes que chegassem outros clientes que enrolassem menos e comprassem mais.

324 mais 451 quanto é? Oi? Nem me lembro da primeira cifra disse eu à mãe do menino: Nem eu, ela respondeu. O pai já tinha pulado fora sem que eu tivesse sacado sua ausência mais que esperada. A culpa dos problemas, em geral, é sempre da mãe. E ela que se vire nos 30, 40, 50…

775! Uau, você é mesmo muito bom em matemática (na verdade a conta era bem fácil, mas vamos fingir, pois tenho que vender). E aí foi, número vai número vem e o menino entre o fazer uma conta e outra, pergunta: mãe quanto dinheiro você já ganhou na vida? Tanto. Tannnnnto! E eu ali, tendo que aturar esse papo para ganhar um reles troco.

A obsessão do menino em lavar as mãos só aumentava, e no meio, ele colocava números, somas, cifras…. As coisas aqui são empoeiradas, disse eu sem mentir, pois falei desde o início que a loja era xexelenta e as traças faziam festa, mas eu tinha entendido o grau da situação e só quis aliviar para a rica-pobre mãe.

Você conhece o Cascão? Não? É um personagem das histórias em quadrinhos que, ao contrário de você, odeia água e a evita a todo custo. Bem que vocês dois fariam uma bela duplinha, e quem sabe equilibrariam as coisas… o aquecimento global, as enchentes contra as secas….

Ninguém me ouviu (ainda bem, pois a ironia não é, de fato, um artifício que todos entendem).

Água vai água vem, o menino abraça a mãe e os dois olham para mim, tipo, faz uma foto! E eu fiz! A mãe com um olhar confidencial me disse: você vê por que eu não resisto?

Puta que te pariu e você que pariu essa majestade. Eu entendi muito, mas também entendi nada. Teria tanto a dizer e queria o mesmo tanto ajudar, mas não posso. Só posso levantar teorias:

  • essa mãe roubou, foi processada enquanto estava grávida? Molhar as mãos é pagar propina no Brasil, e até onde eu sei, em outros países também é costume usar o mesmo ditado…
  • “Mãe, quanto dinheiro você ganhou? “Tanto!,” esse diálogo confirmava a minha teoria-mãe…

Mas o fato é que eu tinha apenas suposições. Eu era pura psicanálise selvagem. Selvagem no sentido forte do termo, selvagem no desejo de investigar, de analisar a compulsão neurótica obsessiva no dia a dia naquele dia. Eu também obsessiva. Mas até lá eu era vendedora que no final, segurando a boca cheia de perguntas, consegui vender.

Mas as perguntas ficaram compulsando em mim: o que você tanto quer lavar? O que você tanto quer fazer escorrer nesse gotejar de água pura, que nem sede mata, mas te coloca na posição de dominar números na compulsão dos dias que escorrem feito matemática, como quem busca soluções para um problema difícil, digno de uma medalha Fields: contar as gotículas das gotículas da gota, até que as águas se rompam feito um parto de emergência…

A verdade é que os dias seguem na compulsão natural de seguirem. E outras compulsões virão. Como o dois vem depois do um. Como pessoas de corações aflitos… buscam orelhas de ouvidos abertos. A vida é clínica.

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