A sublimação é um conceito fundamental na teoria psicanalítica, particularmente no pensamento de Sigmund Freud, que a definiu como um mecanismo pelo qual um impulso — geralmente de natureza sexual ou agressiva — é desviado de seus objetivos originais e redirecionado para finalidades socialmente aceitáveis e até mesmo valorizadas.
Para facilitar a compreensão, podemos pensar em impulso como um instinto primitivo. Contudo, a psicanálise prefere o termo pulsão, que representa uma força mais complexa e especificamente humana. A pulsão ultrapassa a animalidade, pois envolve desejos que nem sempre obedecem à razão, e se articula com escolhas, símbolos e linguagem — ou seja, com o inconsciente, que é o campo fundamental da psicanálise.
Para Freud, a sublimação é um processo psíquico em que uma energia pulsional de base “ruim” — um sintoma, como a ansiedade, a violência, o desejo de vingança ou mesmo a tendência à autodestruição — pode ser canalizada para fins que ultrapassam o plano “instintivo”. Essa transformação abre caminho para manifestações culturais, artísticas, científicas ou espirituais. O impulso original não é apagado ou reprimido: ele é redirecionado e transformado, ganhando um novo valor simbólico e socialmente aceito.
Freud via na sublimação uma das formas mais saudáveis de lidar com os conflitos internos. Indivíduos que conseguem sublimar seus impulsos contribuem para a cultura, a vida coletiva e a própria saúde psíquica, já que produzem algo a partir de uma força que, de outro modo, poderia ser destrutiva.
Jacques Lacan, ao reler Freud, aprofundou esse raciocínio ao dizer que “a sublimação eleva um objeto à dignidade da Coisa”. Em termos mais simples: ao sublimar, o sujeito transforma o que o angustia ou o fascina em algo com valor simbólico — um objeto artístico, uma ideia, uma obra — que ultrapassa a busca de satisfação imediata. A Coisa, no sentido lacaniano, é aquilo que falta, que causa o desejo, mas que também pode se tornar uma fonte de criação.
Sublimação na prática
Um exemplo contemporâneo e concreto da sublimação pode ser observado na trajetória de Ozzy Osbourne e da banda Black Sabbath. Reconhecido como um dos criadores do heavy metal, Ozzy relatou em diversas entrevistas que a música foi essencial para canalizar seus impulsos — alguns autodestrutivos, outros violentos — e evitar um possível destino criminal.
Em uma entrevista recente à BBC, Ozzy relembrou um episódio marcante:
“Eu tinha duas escolhas: ser um criminoso ruim ou um criminoso estúpido, ou ser um artista. Quando não paguei várias multas, meu pai me deixou passar alguns dias em Winston Green, um centro correcional, e isso funcionou, porque eu não queria voltar para lá. E agora, aqui estamos: no último show do Black Sabbath. Muito emocionante.”
O show de despedida da banda, realizado em julho de 2025 em Birmingham, cidade natal do grupo, foi mais do que um espetáculo musical: tornou-se um símbolo da transformação de energia pulsional em potência criativa. Durante a apresentação, diversos músicos prestaram homenagem ao legado do Sabbath. Phil Anselmo, do Pantera, declarou:
“Sem o Black Sabbath, todos seríamos pessoas diferentes, essa é a verdade. Eu sei que não estaria aqui com um microfone na mão sem o Black Sabbath… quem é maior?”
James Hetfield, do Metallica, acrescentou:
“Sem o Sabbath, não haveria Metallica. Obrigado, rapazes, por nos darem um propósito na vida.”
Essas declarações revelam que o processo de sublimação pode ir além do individual: torna-se cultural. O heavy metal, embora marcado por sonoridade agressiva, funciona como espaço de criação, de organização simbólica de angústias e conflitos, de construção de identidade e laço social. Ele dá forma a algo que, se permanecesse solto por aí, poderia se manifestar de forma destrutiva.
Essa dinâmica pode ser observada também em outros estilos. No samba, por exemplo, Bezerra da Silva canta:
“E se não fosse o samba quem sabe hoje em dia eu seria do bicho?”
E Dona Ivone Lara que, pensando numa solução para a depressão foi ao violão:
“Tristeza foi assim se aproveitando
Pra tentar se aproximar
Ai de mim
Se não fosse o pandeiro, o ganzá e o tamborim…”
Outro exemplo revelador pode ser visto no documentário “A Arquitetura da Destruição”, que mostra como a estética nazista foi estruturada a partir de um ideal artístico frustrado — o de Adolf Hitler, que tentou ser pintor e foi rejeitado. O filme sugere que, talvez, a história da Alemanha (e do mundo) teria sido diferente se aquela energia pulsional tivesse encontrado um caminho criativo — uma via de sublimação.
A Arte de Sublimar
Como vimos, a sublimação é um conceito central não só para entender a dinâmica psíquica individual, mas também para refletir sobre fenômenos sociais e culturais. Ela nos mostra que é possível transformar um impulso destrutivo em um ato criativo, fortalecendo a pulsão de vida em detrimento da pulsão de morte.
Ao reconhecer que sintomas e conflitos podem ser convertidos em potência criadora — e que há valor e dignidade nesse movimento — a psicanálise oferece uma forma ética de lidar com o sofrimento humano. Não se trata de apagar o que há de sombrio ou excessivo no sujeito, mas de dar forma a isso. De criar algo melhor com isso.
Fontes:
SCIELO – Do vazio ao objeto: das ding e a sublimação em Jacques Lacan.
BBC News – Entrevista com Ozzy Osbourne
Tangerina (UOL) – Como foi o show de despedida de Ozzy Osbourne com o Black Sabbath
Wikipedia – The Architecture of Doom (documentário)