O que Freud diria hoje sobre felicidade e ser feliz

Mulher saltando de felicidade na natureza/Felicidade ©Freepik

Não há dúvidas de que a sociedade contemporânea é extremamente hedonista e “narcisista”, como adoram dizer. A busca pelo prazer e pela felicidade são um imperativo categórico: pense positivo, aproveite o momento presente, o importante é ser feliz, Deus te ama. Mas como ser feliz em tempos de guerra, desemprego, ameaça da Inteligência Artificial, etc, etc? Qual “receita” o pai da Psicanálise poderia nos dar hoje, se fosse vivo?

Para responder a pergunta, utilizaremos o capítulo 2 do “Mal-estar na Civilização”, obra de Sigmund Freud publicada em 1930.

A Felicidade não faz parte dos planos da Criação

Já como ponto de partida, Freud critica o sistema de doutrinas que responde aos enigmas do mundo de uma maneira muito inocente, até mesmo infantil. Ele está criticando a religião, que tem como fundamento a ideia de que existe um Deus que quer a nossa felicidade. De um Deus que nos criou à sua imagem e semelhança e tem um lugar reservado para nós. Freud está criticando a ideia de que existe uma providência divina que vê nossas ações e está pronta a nos salvar. Exatamente como um pai que nos ama, mas nos cobra um bom comportamento para sermos amados.

Esse tipo de pensamento providencial divino é necessário para o homem comum, pois lhe serve como lenitivo da vida dura. Mas nós podemos muito mais que isso, podemos encontrar lenitivos melhores nas artes e nas ciências, até porque, diria Freud, a verdade é que Deus, ou o Universo se assim preferir, não criou o homem para ser feliz. Deus não está nem aí para a nossa felicidade ou para a nossa satisfação.

Para Freud, o que estabelece a finalidade da vida para o homem comum é o princípio do prazer, em outras palavras, ser feliz! Tal concepção é absolutamente inexequível: “a intenção de que o homem seja feliz não se acha no plano da Criação”, diz Freud.

Isso porque somos condicionados, por nossa própria constituição física e psíquica, a não experimentarmos a felicidade de maneira satisfatória:

“Aquilo a que chamamos ‘felicidade’, no sentido mais estrito, vem da satisfação repentina de necessidades altamente represadas, e por sua natureza é possível apenas como fenômeno episódico”.

“Nossas possibilidades de felicidade são restringidas por nossa constituição. É bem menos difícil experimentar a infelicidade. O sofrer nos ameaça a partir de três lados: do próprio corpo, que, fadado ao declínio e à dissolução não pode sequer dispensar a dor e o medo, como sinais de advertência; do mundo externo, que pode se abater sobre nós com forças poderosíssimas, inexoráveis, destruidoras; e, por fim, das relações com os outros seres humanos.”

Mais que a felicidade, evitar a infelicidade

A teoria de Freud é sim determinista nesse sentido, mas isso não significa que nada podemos fazer em busca da felicidade. Há inclusive uma pequena lista de paliativos contra a dor, das drogas ao amor, o homem busca mais que a felicidade, evitar a infelicidade. E isso é facilmente verificável quando percebemos o prazer que as pessoas têm em ver o sofrimento do outro. A tragédia é catártica (pois “não aconteceu comigo”).

Freud não critica a espiritualidade do ser humano, pelo contrário, sua crítica é direcionada a uma  doutrina ideológica que coloca as pessoas em um lugar de “todos iguais perante a Deus”, tirando do sujeito a sua capacidade de encontrar a felicidade de acordo com sua própria natureza.

Por exemplo:

Um homem erótico pode ser feliz nas relações afetivas; um narcisista, buscará satisfação em sua autossuficiência; enquanto um homem de ação, será feliz ao testar sua força com o mundo externo.

“A religião atrapalha esse jogo de escolha e adaptação, ao impor igualmente a todos o seu caminho para conseguir felicidade e guardar-se do sofrimento”, diz Freud.

A religião subestima a capacidade e a inteligência humana, deformando delirantemente a imagem do mundo real, incitando o homem a um infantilismo psíquico e o inserindo num delírio de massa.

Como ser feliz, segundo Freud

Voltando à pergunta do título, qual seria a “receita” que Freud poderia nos dar nos dias de hoje?

Para começo, ou melhor, para fim de conversa, não há receita!

“Não há, aqui, um conselho válido para todos; cada um tem que descobrir a sua maneira particular de ser feliz.”

Mais que isso, não há felicidade constante e, pela sua própria natureza, a felicidade como finalidade da vida não está nos planos de Deus.

Uma dica freudiana?

“Existem, como dissemos, muitos caminhos que podem levar à felicidade, tal como é acessível ao ser humano, mas nenhum que a ela conduza seguramente.”

“Assim como o negociante cauteloso evita imobilizar todo o seu capital numa só coisa, também a sabedoria aconselhará talvez a não esperar toda satisfação de uma única tendência”.

Leia também: O que significa Sentimento Oceânico? 

Fonte: Freud, S. (2010). O Mal-estar na Civilização In S. Freud, Obras completas (P. C. de Souza, Trad., Vol. 18, pp. 18-29). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930)

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