Desejo bom e desejo ruim. Ética e Moral num caso clínico hipotético

Desejo. Assoprar flor do dente-de-leão

Um dos assuntos mais importantes no estudo da Psicanálise é o tema do desejo. O desejo poderia ser definido como pulsão de vida segundo a teoria freudiana, na qual o homem busca prazer na satisfação de desejos, ao mesmo tempo que evita o desprazer. Já para Lacan, o desejo é a falta que nos leva a preencher vazios, materiais ou imaginários que sejam, em uma luta incessante porque, sendo falta, nunca se realiza. O desejo é a condição humana que de certa forma dá função à vida, tal qual um objeto, como um vaso, pode ser preenchido sem nunca deixar de ser vaso, de natureza vazia e com função de ser preenchido.

Em palavras simples, para Lacan, somos movidos por um desejo que não para de cessar e que, se cessar, complica. A pior situação em que um ser humano pode se encontrar é na falta da falta que é a depressão, a melancolia, a falta de desejo de desejar. Por isso, a psicanálise lacaniana trabalha tanto com o desejo. Por mais que ele seja um objeto perdido, impossível de ser capturado, é a sua busca que dá pulsão… de vida? Mas também de morte!

Sigmund Freud em “Muito Além do Princípio do Prazer” revê sua teoria e admite que o que move a vida não é somente a busca pelo prazer, mas também pelo desprazer, por mais estranho que isso nos pareça.

Desejo bom e desejo ruim

Vamos tentar misturar Freud e Lacan rapidamente para fazer uma distinção entre desejo bom e desejo ruim, para depois apresentar um caso hipotético.

Desejo ruim é um desejo que pode ser “realizado” rapidamente. Por exemplo, um vício. A busca pelo desejo que poderia ser uma pulsão de vida, vira pulsão de morte nesse caso. O desejo se realiza e tão logo se restabelece, em um ciclo vicioso, digamos de escravidãopois adictos eram escravos na Roma Antiga. Um vício é um desejo ruim não porque seu objeto é danoso (drogas, jogos, etc), mas porque o sujeito se vê escravo de um desejo do qual não consegue se libertar.

Um desejo bom, continuando com a analogia da escravidão, é o desejo que nos liberta. Liberta do que? Do Outro! Do algoz, do senhor dos escravos que é nós mesmos, nossa sociedade, nossa civilização, as regrinhas que estabelecemos para por ordem no galinheiro.

Ética e Moral num caso clínico hipotético

Até aqui fizemos um resumo muito resumido de um assunto tão extenso, que seria até incorreto fazê-lo, mas fizemos apenas para introduzir um caso hipotético porque na clínica lacaniana o desejo é literalmente o x da questão, a incógnita que não se resolve e, por não se resolver, não cessa de nos pulsionar para o bem e ou para o mal.

Nosso psicanalisando hipotético é Alberto, filho único de uma mãe que o criou sozinha, pois o pai os abandonou. Alberto tem problemas alimentares, é demasiadamente magro e se sente mal com tudo o que come, embora consiga trabalhar e se sustentar financeiramente. Seu desejo era ter um amor e uma família feliz como a que ele nunca teve.

Um dia Alberto engravida Beatriz, com a qual teve um relacionamento de anos, mas ao mesmo tempo se apaixona por Claudia, que tem dois filhos, um de cada relação diferente e cujos pais também abandonaram seus filhos.

Beatriz está deprimida, pois não esperava que Alberto a abandonasse grávida. Claudia, ciumenta e ferida pelo abandono dos pais de seus filhos, pede a Alberto que não tenha contato com o bebê recém-nascido, com medo de que ele volte a se relacionar com Beatriz.

Alberto está angustiado, pois se sente um pouco culpado pela depressão de Beatriz, mas segue seu desejo, resolve as questões da paternidade com um advogado e finalmente se sente realizado com Claudia: viaja, compra presentes, paga a pensão alimentícia ao filho e mantém distância de Beatriz e do bebê para não perder Claudia.

Qual era o desejo de Alberto? O de ter uma família que agora tem: com Claudia e os dois filhos que não são seus, mas é como se fossem. Alberto diz se sentir finalmente feliz e realizado, mas seu sintoma continua, tudo o que ele come lhe faz mal.

Qual é a questão moral da história? Independente do que pensa Beatriz ou a sociedade, Alberto, apaixonado, seguiu seu desejo de ficar com Claudia, embora pagando o preço de se manter longe do próprio filho. Qual é a questão ética? No bebê ninguém pensou.

Até que ponto um desejo pessoal deve se sobrepor ao desejo social? Para a psicanálise, sempre! Bancar o próprio desejo independente do outro, das regras sociais, etc, para ser o que você quer e pode ser. Mas não é simples, porque vivemos em uma sociedade e respondemos pelos nossos atos, seja na relação com os outros, seja na relação com nós mesmos. Por isso, a culpa é tão mais eficaz que as leis. Muitos de nossos desejos não os seguimos não porque são ilegais, mas porque são imorais.

No caso em questão, seria melhor que Alberto abdicasse um pouco de seu desejo de estar com Claudia? Rompesse com a regra imposta por esta e assumisse a real paternidade do filho, para não pagar eventuais consequências de tê-lo abandonado? Afinal, seu sintoma continua e poderia vir exatamente do fato de ele também ter sido abandonado por seu pai.

Seguir o próprio desejo parece fácil, difícil é desvendar o x da questão, ou seja, qual é o desejo real. O de Alberto pode ser compreender o pai, pode ser se vingar do pai, assim como o de Claudia se vingar do abandono dos pais de seus filhos.

Como desenrolar os nós dos desejos que amarramos em nossas vidas e que raramente têm a ver somente conosco? Que não são apenas de ordem moral, mas também de natureza ética, pois envolvem outras pessoas e outros desejos implicados entre si?

Por isso, o desejo é um dos temas mais interessantes da Psicanálise e que dificilmente pode ser discutido de maneira apenas subjetiva, pois a palavra indivíduo não existe. Para a Psicanálise, o ser humano é dividido por natureza. É eu, super eu e isso. É objeto, desejo e falta. É teoria, prática e criação.

Fontes:

FREUD, S. (1920) “Além do princípio do prazer”. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.

LACAN, J. (1959-60). O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991. 

OLIVEIRA, Beto. Vídeo-aula – Módulo 3 (Criação e Sublimação: a pulsão sob o crivo da ética). Canal www.youtube.com/@betoli7296, 5 maio 2020. Disponível em: https://youtu.be/oycamNgmEFY?si=nIgq1pdznqftvt6C. Acesso em: 20 ago. 2024.

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