Culpa, Castigo e (des) Controle: O fim do Mal-estar na Civilização

No Capítulo 6 de O Mal-estar na Civilização, quase no final do livro portanto, as ideias de Freud sobre a civilização vão concluindo forma e adquirindo maior clareza. A civilização é um combate de gigantes “que as nossas babás tentam apaziguar com sua cantiga de ninar sobre o Céu”. Esses gigantes são as forças de Eros contra as forças da Morte: o instinto de preservação da vida contra o seu oposto, que opera sob a forma da destruição.

A força que uniu indivíduos, famílias, raças, povos e nações numa unidade maior – a qual chamamos civilização, e que serve aos propósitos de Eros – deveria estar ligada por laços amorosos, pois a necessidade e as vantagens apenas do trabalho em comum não seriam suficientes para manter a multidão unida. Mas como junto a Eros tem-se o instinto agressivo natural do homem, a hostilidade individual e coletiva de uns contra os outros fizeram com que o programa da civilização fosse sempre frágil e conflituoso.

Em outras palavras, essa luta do bem contra o mal (do amor contra o ódio, da vida contra a morte) é o conteúdo essencial da vida e a base sobre a qual se instituiu o processo civilizatório.

A Culpa Como Processo Civilizatório

O processo civilizatório conta com uma arma muito poderosa a seu favor, pois o homem não tem apenas a propensão natural de destruir o outro, como também é propenso a destruir a si mesmo através do sentimento de culpa, um conceito fundamental discutido no Capítulo 7.

A civilização utiliza diversos meios para inibir a agressividade humana, mas o seu método mais importante envolve a internalização dessa hostilidade, que é direcionada contra o próprio eu. Essa energia destrutiva é assumida pelo superego (representado pelas normas e os bons costumes), que age contra o eu sob a forma de “consciência pesada”, impondo a si mesmo a agressividade que gostaria de direcionar ao outro. Dessa tensão entre o superego e o ego nasce o sentimento de culpa, que se manifesta como necessidade de punição.

Assim, a civilização controla o desejo agressivo do indivíduo, enfraquecendo-o e estabelecendo um agente interno que o monitora: uma espécie de deus onipresente, onisciente, que a tudo vê e a tudo pune.

A culpa, para Freud, é uma espécie de elo civilizatório que liga toda a humanidade no sentimento comum de “ter matado o pai”, de ter rompido as regras para satisfazer aos próprios desejos de poder. A ambivalência do amor e do ódio paterno está presente em todos nós porque o pai nos protege, mas também nos submete e nos subjuga às suas ordens.

A Necessidade do Castigo

No oitavo e último Capítulo, uma frase resume todo o livro: o sentimento de culpa é o maior problema no desenvolvimento da civilização, porque o preço que pagamos por nosso avanço civilizatório é a perda de felicidade pela intensificação do sentimento de culpa e da necessidade inconsciente do castigo.

A necessidade do castigo é uma manifestação masoquista do ego sob a influência do superego sádico. A culpa existe antes do superego e resulta do medo da autoridade externa.

Fora de Controle

As dinâmicas civilizatórias, que partem da necessidade de controlar a natureza (geral e humana), desconsiderando seu caráter incontrolável, nos levou a um ponto onde as duas potências em conflito (Eros e Morte) nunca estiveram tão fora de controle com as ameaças de bomba atômica e Inteligência Artificial, em um planeta habitado por seres infelizes e cansados de carregar a culpa primitiva de ter desejado o poder do pai.

Talvez pareça que estejamos caminhando rumo à autodestruição total, mas não é assim que Freud termina o livro. Freud conclui com a esperança de que Eros, a força do amor e da união, prevaleça contra seu adversário, o instinto de destruição. Mas como ambos são potências celestiais e imortais, fica difícil prever o desenrolar desse embate.

Fonte: Freud, S. (2010). O Mal-estar na Civilização In S. Freud, Obras completas (P. C. de Souza, Trad., Vol. 18). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930)

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