Tudo começa no “Mal-estar na Civilização”, capítulo 1. Romain Rolland, escritor, dramaturgo francês e prêmio Nobel da Literatura, recebe uma pequena obra na qual Sigmund Freud trata a religião como uma ilusão. Rolland concorda com a crítica do amigo interlocutor, mas lamenta o fato de Freud não ter compreendido um sentimento peculiar, que seria a fonte da energia religiosa, independente das religiões.
O escritor nomeia esse sentimento de “oceânico”, o qual ele mesmo sentiu e soube que tantos outros sentiam, talvez toda a humanidade sinta. Tal sentimento seria a sensação de eternidade, aquele famoso “somos todos UM”, uma sensação de eternidade, de que as coisas não acabam aqui. Rolland diz que esse sentimento está além das religiões e por isso, alguém pode se sentir religioso ainda que rejeite todo e qualquer tipo de fé e de ilusão.
Freud desconhece tal sentimento em si, mas acredita que ele possa existir em outras pessoas, por que não? E então, ele passa a destrinchar de onde tal sentimento poderia vir, apesar da dificuldade de descrever cientificamente um sentimento.
Assim, Freud vai em busca de entender se, e como, poderia existir um sentimento inato no ser humano, que o vinculasse de imediato ao mundo, o tal do sentimento oceânico.
Para explicar tal fenômeno, Freud usa alguns exemplos práticos, primeiro fala da constituição do EU, que inicialmente tem tudo. O bebê nasce com esse sentimento de que tudo é ele e ele é tudo até que, a duras penas, começa a entender que existe um outro, (o peito é da mãe e não dele, pois só aparece quando ele chora). Assim, instaura-se o que Freud chama de princípio da realidade, uma tentativa de separar o interno do externo, o que é eu e o que é o outro. Então, o atual sentimento do EU pode sim ser um vestígio do que um dia foi o eu sem limites com o todo. Seria isso o tal sentimento oceânico?
Freud dá outros exemplos bem didáticos, usando a teoria da evolução darwiniana, em que o DNA melhor adaptado vem de uma cadeia anterior de melhores adaptados, ou a formação de uma cidade antiga, cujas ruínas se encontram debaixo das novas construções, esclarecendo que na vida psíquica também é assim: a conservação do passado é uma constante (nas memórias, repetições, nos sonhos, etc).
Então, Freud trama uma rede retroativa para compreender o tal do sentimento oceânico que o amigo sente e ele não, mas não chega à mesma conclusão esotérica que Rolland quis dar ao termo. Esse EU que é TODOS, para Freud, vem de um desamparo infantil, o qual todo homem sente. A teoria freudiana é determinista neste sentido, condicional, porque todo homem vem desamparado ao mundo e precisa da ajuda do outro para sobreviver. Esta é a condição humana.
Longe de romantismo, esoterismo ou de qualquer outra coisa “fofa”, o sentimento oceânico para Freud, ou seja, esta sensação de ser um com o universo, está mais para uma espécie de narcisismo ilimitado, onde o homem busca desesperadamente estar no controle de tudo para se proteger da ameaça do mundo exterior, acreditando, ou melhor, ilusionando – para retomar ao texto onde ele dizia que a religião é uma ilusão – que existe um grande pai que olha por nós, que nos protege, que conhece as nossas necessidades, que escuta nossos pedidos desesperados (o choro condicional) e, sobretudo, nos apazigua de um eventual arrependimento por termos feito coisas ruins. Como faz todo bom e compreensivo pai: protege e perdoa, mas também cobra e exige!
Bem por isso, o filho desamparado no oceano de sentimentos se sente acolhido, mas ao mesmo tempo está sempre em perigo. E esse é o Mal-estar na Civilização. As águas se agitam com o vento e nada se pode fazer. Alguns rezam, outros pintam quadros, mas isso é assunto para outros capítulos.
Fonte: Freud, S. (2010). O Mal-estar na Civilização In S. Freud, Obras completas (P. C. de Souza, Trad., Vol. 18, pp. 9-18). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930)