Em tom singelo singular de primeira pessoa, devo confessar o quão difícil é juntar dois gênios da humanidade em um só pensamento. Mas como Deus está em tudo, em uma nesga de mar entrevi Freud e Clarice dialogando, graças à sugestão de nosso querido professor Elias Farias, psiquiatra e psicanalista.
– Tem um rato no oceano – disse Clarice a Freud, contando-lhe um sonho.
É impressionante como a arte e a psicanálise se mesclam de maneira inseparável. Ambas desbravam almas e nessa descoberta, resta, apenas catarse.
No conto ‘Perdoando Deus’, vemos Clarice Lispector tendo a nobre sensação do sentimento oceânico descrito por Freud em seu O Mal-estar na civilização. “A mãe de Deus”, como se percebe Clarice, de repente sente aquela leveza típica de quem se une ao todo. Mas Deus, maravilhoso, bom e perfeito é, na verdade, cruel. Sim, cruel! Pois colocou um rato no caminho de uma musofóbica (μῦς, do grego mouse, rato; e fobia, medo).
O mundo é assim: belo e bruto, suave como a brisa do mar e pesado como o sangue que da morte escorre. E como Deus, onipresente, onipotente, onisciente está em tudo, está também no sangue do rato dilacerado.
Pois é preciso abarcar esse rato no oceano de águas límpidas e cristalinas, mas com seu sangue vermelho vivo, é capaz de atrair predadores; quais predadores? O EU predador, este também contido em Deus, pois tudo é Deus.
Eis que Clarice lança uma frase muito freudiana em seu conto:
“Porque o rato existe tanto quanto eu, e talvez nem eu nem o rato sejamos para ser vistos por nós mesmos, a distância nos iguala.”
Ou seja, a distância entre o eu e o outro é tão opaca quanto a distância entre eu e mim mesma. Isso é o inconsciente, o oceano inconsciente onde as coisas não têm sentido: tem um rato no oceano.
Em vez de morto, o rato está vivo. Em vez de vivo, está morto, dilacerado de sangue na nesga, na sarjeta, no fio fino que nos separa do outro (se é que nos separa).
– E como é esse rato? – pergunta Freud a Clarice…
– Esse rato sou eu – responde a escritora – Meu Deus, esse rato sou eu!
“Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe”, conclui Clarice perdoando Deus por ter-lhe mostrado que tem um rato no oceano, no lindo sentimento oceânico que une todos os homens e ainda proclama: amai-vos uns aos outros, amai-vos a quem vos odeia, as cobras, as baratas e os mosquitos. Amai também os ratos!
Esse conto bem representa o que seria a Felicidade Clandestina… Freudiana!
Fontes:
Freud, Sigmund (2010). O Mal-estar na Civilização In S. Freud, Obras completas(P. C. de Souza, Trad., Vol. 18). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930).
Lispector, Clarice. “Perdoando Deus.” In: Lispector, Clarice. Felicidade Clandestina. Rio de
Janeiro: Rocco, 1998, p. 41–45.
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